Universos Paralelos
Este é o primeiro e último post redigido em terras lusitanas e prévio à grande largada.
É também, presumivelmente, o primeiro e último post que apenas fala de expectativas, esperanças, ansiedades e receios. Daqui para a frente pretendo falar de descobertas.
Toda a emigração tem a sua história. É inerente a cada emigrante um percurso que remonta ao princípio de tudo, uma individualidade tão complexa como o universo de per si, um drama que vale uma vida. No entanto, é tendência invariável falar na emigração misturando-a com palavras tão destituídas de humanidade como percentagens, política, salários ou fluxos migratórios e sócio-culturais e mais o que o diabo levar.
Também esta nossa emigração tem a sua história. É uma história bem diferente daquela que acompanha o Zé Povinho numa Toyota Hyace até França, mas também ela é uma história, e, como todas as outras, tem direito ao seu espaço. Até porque, parece-me, seria bem feliz o dia em que pudéssemos substituir todas as histórias de emigrações por esta que vos começarei agora a contar. Penso que dentro de 1 ano estarei em condições de vos dizer como acaba.
Desde que tomei conhecimento da existência do programa Erasmus que se me tornou claro que dificilmente não tomaria proveito da situação. Algum dia no futuro, concerteza. O que poderia ter deitado tudo a perder é este mundo de apatia e desvontades (acho que fui eu quem inventou esta palavra) onde vivemos. Não estranharia nada um universo paralelo em que fiquei os meus 5 anos de curso a dizer: “Para o ano não falha: vou de Erasmus!”. Mas este não é esse universo.
Faz um ano (ou coisa que o valha) que a Carla e eu demos o passo em frente. Soubemos das datas das candidaturas e começámos a fazer conjecturas. Inglaterra ou nada! Era essa a minha ideia. Naturalmente surgiu Edimburgo que, para mim, sempre simbolizou aquilo que gostava de ter vivido academicamente (e de algum modo também socialmente): um mundo de cultura, que respire essa mesma cultura, o interesse, a iniciativa, o investimento intelectual. Seria uma emancipação desta mediocridade, deste lerdo raciocínio baço, deste “Morangos com Açúcar” sem doçura alguma que alegre o espírito ou que alimente a alma. Hoje (nem passou assim tanto tempo) não tenho dúvidas: que ingenuidade a minha.
Hoje sou da opinião que a largueza de espírito somos nós próprios que a criamos. Não podemos esperar que ela exista à nossa volta para vir a florir dentro de nós. O que os outros pensam (ou não pensam, que é mais o caso) limita-nos, talvez, mas não nos determina. Neste sentido era erróneo, egoísta, quase desrespeitoso para nós todos e cobarde para mim mesmo pensar que a emigração era o gatilho para tal emancipação. Seria ainda – e pior que tudo – entrar nesse ciclo vicioso de letargia mental que tanto criticava.
Mas depois entraram as burocracias, o dinheiro, as políticas. Como sempre, e sempre que assim é, caiu a utopia. «We are sorry to inform you that we are not accepting new Erasmus agreements. However, if you still want to study here at the University of Edinburgh, we will be pleased to welcome you as a Visiting Student». O Visiting Student paga qualquer coisa como 1500 contos por semestre.
Com os prazos a aproximarem-se, íamos tentando todas as universidades inglesas de que nos lembrávamos. Apanhámos com um coordenador de Erasmus, o senhor Thibault, que reunia na sua pessoa todas as qualidades e defeitos que não precisamos em alguém que desempenhe tal papel. Frequentemente esquecia-se de quem éramos ou do que é que estávamos a tentar fazer. Ainda hoje se me seca a boca ao relembrar a maneira como ele percorria a sua caixa de mails de uma ponta à outra a pente fino à procura de alguma resposta que nos dissesse respeito sempre que lá íamos. Mas ele não via os mails? Não se lembrava de os ter visto? Mas lembrava-se de ter mandado a proposta respectiva à resposta que em vão procurava? E finalmente reencontrava sempre a mesma, que lia como se pela primeira vez com o ar triunfante de quem acha o que procura: “Não foram aceites em Edimburgo”.
Até hoje tenho a sensação que se não fosse ele talvez hoje estivéssemos a meter mais roupa quente nas malas, a pensar no rigoroso inverno da Escócia.
Bem, o que é facto é que as propinas em Inglaterra são umas 3 ou 4 vezes superiores à nossa, e além disso existem multidões de estudantes que pretendem fazer Erasmus lá. Não nos calhou essa pequena sorte, quiçá nos tenha calhado a sorte grande.
Depois de algumas 15 visitas ao gabinete do senhor Thibault apercebemo-nos que a solução não residia em Inglaterra.
Decidimos então olhar para a lista de países com os quais já haviam acordos bilaterais de Erasmus com a nossa Faculdade. Siena sobressaiu logo na não numerosa lista. Fizemos a proposta e entregámo-la ao senhor Thibault.
Depois disto, competia em senhor Thibault analisar todas as propostas de planos de estudos e escolher quem é que vai e quem é que fica.
Esta foi a espera mais mortificante de todo o processo. Estávamos totalmente dependentes de um juízo que não contemplava impugnações ou segundas instâncias e no qual depositávamos poucas esperanças…
Bem depois da data prevista, o senhor Thibault decide pronunciar-se: tínhamos sido aceites!
Dificilmente se podem dissociar as histórias de tudo o que as envolve. Como uma bola de neve que vai embatendo nas paredes da montanha, vai saltando e caindo conforme encontra desníveis pelo caminho e enquanto isso vai somando parte da envolvência à sua própria realidade (e só assim pode crescer). Sem a montanha à volta com a sua forma particular, ou a geografia do terreno, ou o tempo frio que preserva a neve, ou alguém que atire o primeiro aglomerado, semente de todo o processo, não se pode contar a história dessa bola de neve. O mesmo se passa com todas as outras histórias.
Assim, existem muitas peripécias associadas a esta história, algumas dignas de relato, tal como a tentativa de cunha que desesperadamente fizemos durante a penosa espera da decisão do senhor Thibault, ou como o problema dos trimestres/semestres que nos levou a escolher 1 ano de permanência, ou como a descoberta de 2 colegas nossos que também se candidataram a Siena e que não foram aceites, ou até como a recepção uma resposta, enganada ou mal informada, de Siena a dizer que o acordo que existia não se nos aplicava. Todas estas histórias ficarão para outra altura.
Finalmente soubemos do nosso sucesso na candidatura para Siena num impessoal mail do senhor Thibault que simplesmente indicava uma data limite para a entrega de um plano de estudos mais elaborado. Era a primeira tarefa do aluno aceite para Erasmus, e só assim, por indução, compreendemos que tínhamos sido aceites.
Nisto, sucedem-se datas e datas, prazos limite ditando o ritmo, por um lado pausado, por outro frenético, desta nossa existência ansiosa. Isto porque nesta altura começámos a existir em 2 mundos distintos: aquele que se prepara para o cataclismo, a mudança, a aventura, o renascer, e outro, distinto, já nosso conhecido de velhos tempos, do hábito, da rotina, do fim de semestre atulhado de trabalhos para entregar, exames para fazer, de avaliações e do tédio agora cada vez mais difícil de aguentar.
Sim, cada vez mais difícil de aguentar. Esta é uma situação idêntica à da casa de banho. Quando estamos mesmo aflitos e aguentamos horas e horas à espera do momento de nos aliviarmos, é exactamente quando chegamos à porta da casa de banho que podemos deitar tudo a perder. Foi a visão da mudança futura que tanto na Carla como em mim – mas especialmente na Carla pelo semestre difícil que ultrapassou (com distinção diga-se) – que fez descer drasticamente os nossos níveis de tolerância para com o intolerável.
Passado todo este tempo de preparativos já não me lembro quantos formulários preenchi, quantas declarações assinei, quantos gabinetes, secretarias e sei lá mais o quê visitei. É cretino ter que escrever o meu nome, o nº do BI, o nome da minha Universidade, a minha morada e todos esses dados correntes em todos os papéis que me passam pelas mãos. Alguns são para a mesma organização. Será que faz sentido eu usar um nome diferente para um curso de língua, do que aquele que uso para a minha acomodação durante a realização do mesmo? Ou um nº de BI diferente? Talvez, para o efeito, a minha universidade mude de nome?
A certa altura começa a fazer sentido pensar-se na viagem. Mais complicações. O avião seria a opção por excelência. O comboio o suplente no banco.
Contudo, era preciso saber com exactidão a data de ida, pelo menos. E a isso não podíamos responder: tudo dependia de um curso intensivo de italiano que tinha vagas limitadas e a concurso que faríamos previamente ao início do ano lectivo. O tempo foi passando e quando finalmente chegou a resposta não serviu de nada: era tarde demais para conseguirmos uma viagem de avião a preço aceitável e, mais a mais, não tínhamos sido aceites. Havia, no entanto, uma segunda via: pagar esse mesmo curso. E bem.
Decidimos por esta segunda via. Temos data. Preparar a viagem. Surge então uma nova hipótese: ir de automóvel. Além das desvantagens óbvias – o perigo acrescido e a responsabilidade extra de um carro “atrelado” – as vantagens pareciam ser muitas: o custo, a liberdade que nos proporciona, a Toscânia que assim se nos apresenta totalmente visitável, o peso da bagagem ilimitado (Carla: para ti é preciso frisar que “ilimitado” é uma hipérbole para simplificar o facto de não estarmos “limitados” aos habituais 20 kg das companhias aéreas) e a possibilidade que assim temos de poder descobrir um pouco desta porção da Europa que nos separa de Siena.
Sempre me fascinaram as Astúrias e a Cantábria. Assim, fugindo ao calor, aos veraneantes e reaproveitando as inúteis horas dispendidas na estrada, pensei em ir pelo norte de Espanha, em oposição ao mais imediato caminho “a eito”. Elaborei então o plano A que seria qualquer coisa como: Lisboa, La Coruña, Bilbao, Lyon (para visitar o meu irmão), Génova, Siena. No entanto, chegámos à conclusão que talvez fosse melhor encurtar a viagem de modo a poder chegar a Siena com maior antecedência. Desta feita, e como até à data presente não tivemos resposta alguma por parte das pessoas envolvidas no curso intensivo – quer sobre a nossa candidatura agora a pagântimos, quer sobre a suposta ajuda a arranjar acomodação – elaborámos o seguinte plano B: Lisboa, Madrid, Girona, Génova, Siena.
Comprámos um livro com todos os Albergues da Juventude da Europa e arredores, de modo que estamos relativamente orientados para deambular com destino pela Europa. Se é que esta frase faz algum sentido.
É claro que também tenho os meus medos. E se as coisas não correrem bem? E se não gostar do sítio, das pessoas, da independência? E se tiver problemas de saúde, com o carro, com as minhas coisas? E se a emigração tiver um efeito demasiadamente forte sobre mim e eu sentir uma ânsia enorme por arranjar um BMW roxo de matrícula francesa, colocar um CD pendurado no espelho retrovisor bem como pequenos acessórios de tuning de todas as cores e de gosto sempre duvidoso?
Neste último caso já fiz a Carla jurar-me que aos primeiros sinais me atira um copo de água fria para a cara e me dá estaladas até eu ser capaz de renegar ao Tony Carreira 3 vezes.
Amanhã vou embora e, meus amigos, não duvidem, tenho os testículos bem apertadinhos. Um gajo só vê coisas boas à sua frente mas, no entanto, não pára de pensar no que deixa para trás. A família, os amigos e até este país que, afinal de contas, amo profundamente.
É difícil deixar tudo isso para trás.
Tentar-vos-ei manter actualizados através deste blog. Pelo menos até onde as circunstâncias mo permitirem.
Quanto às minhas investidas fotográficas podê-las-ão ver em http://www.flickr.com/photos/pprats/ e em http://www.olhares.com/pprats/.
Se me quiserem mandar mails – mandem! – façam o obséquio de utilizar o endereço habitual.
P.S.: Teremos muitas saudades vossas! Guardem o nosso lugar que voltamos daqui a um ano!
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