O Diário do Zé Povinho Emigrado

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sexta-feira, outubro 28, 2005

A nossa bagagem preconceptual

Conhecer muitas nacionalidades diferentes é, essencialmente, um processo de eliminação de ideias erróneas. A nossa bagagem preconceptual é enormíssima, muito maior do que poderíamos concluir apenas introspectivamente. Não posso, contudo, ser naife ao ponto de retirar todo o valor ao preconceito: ele tem um papel inegável enquanto heurística, ajuda-nos a não redescobrir a roda ad infinitum. Mas como identificar o limiar entre a heurística e a preguiça mental? Impressiona-me a facilidade com que agimos com uma legitimidade 100 por cento baseada em opiniões de outrém, que com o tempo absorvemos e se tornaram nossas. Isto sem o serem realmente, pois não têm origem na nossa percepção directa do mundo que nos rodeia. Muitas vezes são opiniões sobre as quais nem chegámos alguma vez a reflectir: aceitámo-las assim que tomámos contacto com elas e – pior! – nem nos apercebemos disso. Que perigosa ingenuidade!

Assim deduzo que, para compreender realmente as coisas, precisamos de estar completamente alheios a tudo. Quando assim não é estamos sempre à espera de algo, o que acaba invariavelmente por alterar o significado da coisa em si. Até quando não estamos à espera de nada, a surpresa por si só já tem algo de expectativa.

Para mal dos nossos pecados, parece-me que é quase impossível este alheamento. Se for possível roçará sempre o anarquismo, ou a indiferença, ou o autismo cultural.

Resta apenas contentarmo-nos com uma tomada de consciência deste processo?

Bastará?

segunda-feira, outubro 17, 2005

Redondâncias

Finalmente tenho vagar para escrever. Tudo está a ser completamente diferente do que esperava, contudo, e por outro lado, tal e qual esperava. Isto porque a única certeza que alguma vez tive sobre o assunto era não haverem certezas – e até nisto é possível enganar-me. De resto, todo o processo se desenrola de maneira totalmente distinta da que imaginei.

Podia contar esta história de modo ortodoxo e ordenar os acontecimentos cronologicamente. Mas ordenar de tal modo uma história destas é ser incoerente para com o seu próprio conteúdo. Por isto, vou começar a contar este início de Erasmus pelo fim. E depois logo se verá.

Depois de uma epopeia de acontecimentos arranjámos casa! Um quarto de tamanho considerável, com 2 camas singulares que juntas formam um enorme letto matrimoniale, 2 mesinhas de cabeceira com respectivos candeeiros, 2 armários onde cabem todas as nossas roupas (tendo em conta o que trouxemos isto não é dizer pouco), 2 escrivaninhas, 2 prateleiras embutidas na parede, 1 tecto abobadado e um chão de paralelepípedos de Terracota - que me lembram a idade do edifício que suporta isto tudo – e, finalmente, uma finestra que dá para a Via dei Pispini, uma rua antiquíssima, central, dentro das muralhas da cidade. Sou de momento residente na Contrada del Nicchio. Para não correr o risco de ordenar demasiadamente este texto, deixo a explicação do que é isto da Contrada mais para a frente.
De início, antes do curso intensivo de italiano ter acabado, partilhámos a casa onde este quarto se insere com outros 3 estudantes: 2 franceses, o Thomas e o Olivier, e 1 austríaco, o Christoph. Agora a maior parte do pessoal foi para as cidades das respectivas universidades onde farão Erasmus, e na nossa casa apenas ficou o Christoph e vieram: o Julien (francês), a Dipa (inglesa de origens indianas) e a Dori (espanhola).
Temos uma cozinha que sobra para as encomendas, uma casa de banho respeitável (e bastante privada) e um soggiorno, que é o mesmo que dizer que existe uma pequena sala de estar com – preparem-se bem! – tv por cabo. Ui!
Tendo em conta os preços que se praticam a renda é bastante baixa. Penso que de todas as pessoas que já conhecemos somos nós quem tem o quarto mais em conta.

A busca de casa não foi muito complicada, mas não deixou de ter as suas atribulações. Quando chegámos a Siena não encontrámos onde dormir. Acabámos por ir parar ao parque de campismo – que é muito bom, diga-se de passagem. Ali ficámos durante 5 dias.
Um belo dia de sol decidimos ir passear pelas redondezas. A meio do caminho, subitamente, começa a chover torrencialmente. Como se não bastasse a minha tenda ser de fabrico chinês e de proveniência de alguma loja de brinquedos já falida há uns 10 anos, tínhamos deixado os sacos-cama a apanhar sol, tal como roupa e toalhas.
Os estragos não foram muito grandes, e deu para dormir mais uma noite partilhando o mesmo saco-cama, aquele que não se molhou (tanto). Mas foi altura de dizer basta. No dia seguinte conseguimos arranjar quarto no albergue da juventude e aí ficámos outros 3 dias. Entretanto começámos as aulas de italiano em curso intensivo e finalmente, como já o disse, fechámos o negócio com o Signor Ruschi, senhorio deste nosso palácio medieval em plena Toscânia.

De todo este tempo que já passou posso recordar imensas situações. Já fizemos algumas amizades e já vivemos situações que 5 vidas jamais viveriam sem uma experiência como esta.
Das amizades devo referir a Anna e o Malte. Dois alemães pertencentes a uma minoria Dinamarquesa. Ela estuda antropologia e ele História da Arte. São pessoas interessantíssimas. É daquelas amizades instantâneas e temo-nos divertido imenso juntos, bem como aprendido imenso neste processo mútuo. É uma pena que, agora que o curso de italiano acabou, tenham ido estudar para Roma, a 231 km daqui e 4 horas de transportes públicos.

Penso que terei tempo para maturar muito do que tenho aprendido, do que tem mudado em mim. Por isso, nesse campo, não me alongarei.


Chegámos a Siena!
O que dizer sobre esta cidade?

...

Poderia começar desde já a dissertar sobre as origens antiquíssimas, as reminiscências de tempos idos tão vincadas em toda a vida pululante nestas pequenas ruas medievais ou, simplesmente, pelas curiosíssimas opções arquitectónicas que por aqui se vêem às paletes - como de resto o cheguei a fazer mas voltei atrás e apaguei tudo (louvada seja a tecla ‘delete’), por isso não fariam puto de ideia que o tinha feito se não o dissesse: de facto digo-o propositadamente tendo consciência que este pequeno trecho fica extremamente complicado e de muito difícil compreensão, mas é isso, a meu ver, que o torna interessante. Se não houver paciência para o esforço de reler até se compreender, passe-se à frente: não tem nada de real interesse para quem ficar satisfeito por saber que o pode fazer. Isto é: passar à frente. – mas não o farei. Contentar-me-ei por fazer a discrição ad hoc:

- Siena é uma cidade pequeníssima. Pode-se atravessar a sua maior extensão a pé em menos de 30 minutos. É constituída por uma meia dúzia de pequenos montes, velhas igrejas e edifícios medievais. Não se encontra uma casa que destoe do estilo geral: medieval (prevalentemente gótico), casas feitas de brick de terracota e pequenas ruas onde carros (com o acesso limitado) e pessoas convivem comummente sem distinções. Come-se bem, mas caro. De resto, a vida aqui é cara. Siena está classificada – de alguns anos para cá – como uma das melhores 5 cidades italianas para se viver: existem universidades activas, escolas, um hospital enorme, segurança e imensa cultura por todo o lado. Não deixa de ser caro.
Mas o que realmente caracteriza Siena, para além disto tudo, é o Palio. O Palio acontece 2 vezes por ano, todos os anos ininterruptamente há quase 800 anos. Basicamente é uma perigosa corrida de cavalos, num pequeno e irregular circuito em forma de concha (como as de Santiago), sem sela e, a cobrirem-se, têm os cavaleiros coloridos fatos. A corrida decorre em pouco mais que 1 minuto. Como é que isto pode ser fulcral numa, já não tão ad hoc, descrição de uma cidade?
Cada um destes coloridos cavaleiros representa uma Contrada. Siena está dividida em 17 Contradas. Tal como Portugal tende a dividir as suas cidades em bairros. Mas aqui as Contradas são muito mais que bairros, que clubes de futebol ou associações de reformados: são família, sensação de pertença a algo que atravessa a história quer horizontal como verticalmente. Ganhar o Palio é o maior orgulho para um senese, as suas cores são as mais belas do mundo, e a sua parte da cidade é a mais importante. Não se engane o sonhador leitor: o importante não é participar, mas sim ganhar!
Siena sem Palio e as respectivas Contradas não é Siena, tal como nenhuma cidade faz sentido sem as suas gentes.

Deixo por aqui esta pequena e esforçada – e muito provavelmente falhada: fazem-se teses de doutoramento sobre o assunto! – tentativa de descrição de Siena e do seu indissociável Palio.

Feitas que estão as apresentações, os primeiros aconchegos à nossa nova realidade, uma gravíssima violação à ordem lógica de ordenação de ideias e acontecimentos bem como a consequente baralhação total do pobre leitor, falta dizer como aqui chegámos. A viagem.

Partimos no dia 28 de Agosto, faz agora um pouco mais dum mês. Com o tempo estas redundâncias transformam-se em redondâncias. A primeira noite passámo-la em Madrid e, de algum modo, foi a mais marcante de todas as que se seguiram. A viagem até lá correu razoavelmente bem, fomos com vagar mas os quilómetros passaram num instante. Mas chegámos a Madrid, uma cidade enorme, caótica, com uma morada na mão, e sem saber absolutamente nada. Como pedir indicações?: os espanhóis não percebem o português e nós não falamos o espanhol. Novos na coisa, sem grande experiência (a nossa noção de estrangeiro pouco se distinguia da de veranear no Algarve), com um carro atolado de bagagem e, como viemos a descobrir ao fim de 2 horas de trânsito madrileno, sem lugar no albergue da juventude. Seguimos uma indicação e fomos parar à pensão Gonzalez. Que buraco! Para chegar ao andar onde estavam os quartos tínhamos que passar por um prédio em ruínas e subir escadas em escombros. Ao me deitar descobri, não com muita satisfação, que a minha cama tinha bastantes pêlos. Decidi, e acho que me compreenderão, dormir em cima da coberta. Mas o carro tinha sido estacionado mesmo em frente a um bando de pessoal tatuado e de tronco nu. A ideia não me reconfortava. Lá descobrimos uma garagem onde pudemos estacionar pela noite. Não foi um bom primeiro contacto com a capital de nuestros hermanos e, por isso, para ultrapassar a experiência decidimos jantar num restaurante indiano e não espanhol, como mandaria a tradição. De barriga cheia lá nos enfiámos no buraco a ver se dormíamos. A meio da noite ouvi um alarme igual ao do meu carro. Como se não fosse suficiente para me inquietar a noite toda, ainda tivemos direito a ouvir uma discussão de um casal na rua. Pensei que se matariam. Antes fosse, para acabar com a barulheira.
Saímos de Madrid assim que pudemos e, de tal maneira queríamos esquecer o episódio, que quando passamos por Girona (supostamente o nosso poiso para essa noite) decidimos continuar e ir dormir em França. Não podíamos ter decidido melhor. A passagem para França pelos Pirenéus é muito bonita e as estradas muito boas. Pensámos dormir numa pousada da juventude em Perpignan mas descobrimos que estava apinhada (haviam tendas montadas no quintal à entrada) pelo que continuámos. Em Narbonne vimos um daqueles Hotéis de desenrasque, à beira da estrada. Aceitámos o preço e dormimos uma noite que compensou a anterior.
No dia seguinte partimos já um pouco tarde e ainda assim decidimos passar por uma praia ali perto para vermos pela primeira vez o azul do mediterrâneo. No entanto seguimos com calma e a viagem fez-se bem. A passagem para Itália passando perto do Mónaco é belíssima. Fez-se noite e ainda não tínhamos onde dormir. Depois de alguma deambulação lá arranjámos um quarto – diga-se de passagem que era espectacular, parecia um palácio – onde nos roubavam menos. A terra era Varazze e foi lá que passámos a nossa primeira noite em Itália. Foi também onde comi a melhor pizza da minha vida (o que me levou a pensar que cá eram todas assim – grande engano): pizza ai frutti di mare.
Partimos depois de um almoço improvisado com destino incerto: passaríamos por Génova, se nos agradasse ficaríamos lá. Senão, inventaríamos um novo destino. Não nos agradou, e o novo destino que inventámos foi... Siena!
Foi assim que, quando não esperávamos, esta viagem para Siena nos trouxe, imagine-se, a Siena.


Não é tudo. Que se há-de fazer?



P.S.: Muitas saudades de todos!